A mordaz aurora corpuscular no seio da discussão elevou ao seu auge o tom dos uivos do locutor que por sua vez se ausentou assim que a sua presença deixou de se sentir... A morte fez o seu trabalho, já nada nem ninguém o poderá ajudar. As palavras estão escritas e os actos executados. Resta aguardar agora pela hora da redenção.

Era bem cedo de manhã...

Era bem cedo de manhã. Um homem iniciava o seu dia de trabalho no campo.
Homem robusto, dos seus cinquenta anos já a passar para os sessenta, olhos escuros, face bem marcada pelo tempo. Habituado à vida dura do campo desde gaiato. Nunca conheceu outra realidade. Bem casado, com dois filhos. Não sabe ler, não sabe escrever. Mas é feliz.
Trepara já para a oliveira a modos de cortar os galhos indesejados.
Estava só.
De cima daquela escada podia ver a estrada que lhe fazia o contacto com a civilização, não estava longe, seriam uns cinquenta e pouco metros.
Pegou mal num dos ramos de apoio e caiu para o vazio em queda livre. Inspirou bem fundo e arregalou bem os olhos quando se viu nesse aperto.
Cai de costas no chão. Fica inconsciente.
A queda foi de dois metros. 
Acorda aos gritos mudos que lhe saem da garganta. As lágrimas escorrem-lhe pelos traços bem marcados do seu rosto. É tremenda a dor que sente no corpo. Não se consegue mexer. Não se consegue levantar.
Passa o tempo. Consegue ver pelo sol que já passa do meio-dia. Será meio da tarde.
Tenta voltar-se e por de barriga para baixo. Consegue-o.
Tem um braço inutilizado, talvez partido … Mal sente as pernas mas consegue-as mover com esforço. Procura por ajuda em redor. Não há ninguém por perto, nem vale a pena gritar, não consegue. É difícil conseguir respirar.
‘A estrada…’, pensa. É a sua saída. É a sua salvação.
Começa por rastejar, ‘São só cinquenta metros.‘, diz para si para ganhar coragem.

Passadas várias horas, já pela madrugada, seguia pela estrada o Sr. Martilho, guarda-rios de profissão, na sua 404 de caixa aberta quando se deparou com um corpo à beira da estrada.
Ali estava um homem dos seus cinquenta anos já a passar para os sessenta, olhos escuros, face bem marcada pelo tempo, a quem, como mais tarde se viria a saber, salvara a vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário