A mordaz aurora corpuscular no seio da discussão elevou ao seu auge o tom dos uivos do locutor que por sua vez se ausentou assim que a sua presença deixou de se sentir... A morte fez o seu trabalho, já nada nem ninguém o poderá ajudar. As palavras estão escritas e os actos executados. Resta aguardar agora pela hora da redenção.

Um mergulho no mar

Dar um mergulho quando a noite cai, entre a neblina fumegante do escarlate nocturno, sentindo nesta pele que me reveste, um calor de amor profundo.
Dar um mergulho quando a noite cai, entre a neblina fumegante do escarlate nocturno, sentindo nesta pele que me reveste, um calor de amor profundo.
Dar um mergulho quando a noite cai, entre a neblina fumegante do escarlate nocturno, sentindo nesta pele que me reveste, um calor de amor profundo.
Dar um mergulho quando a noite cai, entre a neblina fumegante do escarlate nocturno, sentindo nesta pele que me reveste, um calor de amor profundo.
Dar um mergulho quando a noite cai, entre a neblina fumegante do escarlate nocturno, sentindo nesta pele que me reveste, um calor de amor profundo. 

Descemos a rua em direcção à cave

Descemos a rua em direcção à cave.
Hoje é dia de jogo e vamos estar com o Sr. Glauco. Adoramos estar com ele. Deixamo-nos rir que nem perdidos com as suas piadas. Nem sempre fazem sentido mas ele é mesmo assim.
Entre fumo, álcool, rock dos anos 70 e precedentes, inicia o jogo. 21 ou blackjack, o nome tanto faz, estamos ali mesmo pelo desporto. É a razão para estarmos todos juntos…
Alguns ficam incomodados por estar constantemente a perder mas assim que o Sr. Glauco abre a boca é uma perdição, ninguém diz que não. Histórias do passado, quando miúdos, ou até mesmo recentes que não passam sem serem contadas naquele espaço.
O Sr. Glauco passa a conversa de lado para lado, puxa o sorriso daquele que tem diante. Adora estar connosco, sente-se bem e querido. Não leva nada a mal.
E as vezes que os vizinhos aparecem por causa do barulho? Ou as vezes que ficam com um copo de qualquer coisa? Ou até mesmo na conversa com o Sr. Glauco?
Há quanto tempo nos conhecemos, é difícil de definir, mas terá sido no início dos anos 90, quando jogávamos à bola naquela rua ou nos encontrámos naquela tasca, a beber bagaço a 2$50 por volta das sete da manhã.
Hoje as histórias são outras mas a razão é a mesma, estamos juntos porque estamos bem assim. Somos todos amigos, mesmo que o jogo seja mau para alguns daqui saímos todos a ganhar. E contentes.

A melhor coisa do mundo…

A melhor coisa do mundo… é ver o teu sorriso, sentir o teu perfume, receber o teu toque, estremecer com o teu sussurro, provar o sabor suave dos teus lábios… é o estar apaixonado pelo teu ser e poder amar o teu corpo… é o sentir-te perto, perto, perto… é a sensualidade com que fazes tudo… é o poder olhar-te nos olhos sem os desviar por nada… é a atenção que me dás e tudo o mais que eu egoistamente guardo para mim… sim, a melhor coisa do mundo és tu.

Entro no nosso café e sento-me bem junto à grande vitrina

Entro no nosso café e sento-me bem junto à grande vitrina, onde passamos algumas tardes na conversa e a beber uma cerveja. Deparo-me a fitar um casal que aparece da esquina. Param e ficam a olhar de frente. Ele está a dizer-lhe algo que não parece muito bem aos ouvidos dela. Ela está triste. Muito triste. Reparo que está naquele ponto que vai começar a chorar. Gosto de ver uma mulher chorar. Acho sensual não ligo ao facto do seu sentimento, simplesmente gosto. Ela puxa por algo do seu bolso, um lenço. Começa a chorar e limpa as lágrimas que lhe lavam os olhos das coisas que ouve. Ele continua a falar, não se cala, mesmo vendo o que ela sofre com aquelas palavras que não se deviam dizer nunca, nem ali, nem assim. Ele deixa-a. Ela fica. Está devastada, não acredita no que aconteceu e senta-se no banco de madeira que está mesmo ao seu lado. Inclina-se e continua no seu desgosto, na sua penúria.

MGF

Acompanho com a máquina fotográfica todo o alvoroço feito pelas mulheres. Sigo o caminho atrás delas. Hoje é dia de festa, hoje alguém vai “passar a ser mulher”. A “fanateca” lidera o grupo à minha frente e vai decidida. Entramos pelo meio do mato, o meu guia, Mmunda, vai-me puxando o braço, coisa que vou ignorando.
Chegados a uma cabana sou proibido de entrar pelas mulheres, alguns homens estão por ali também mas não entram. ‘Era melhor não estarmos aqui senhor!’ diz-me Mmunda. Olho para ele com interrogação, ‘Como não posso estar aqui? Fui convidado para estar nesta festa. Ainda ontem te disse. Que se passa?’, ‘Há coisas que se passam, devem ficar aqui!’ diz puxando-me outra vez pelo braço. Ouço crianças a chorar, meninas. Ouço os gritos desesperados que dali escapam e apercebo-me de que algo não está bem. ‘Afinal que se passa aqui?’ pergunto eu perplexo, ‘Era para ser um ritual de passagem e são estes gritos que oiço? Crianças desesperadas aos gritos e choros? Mmunda que é isto?’ pergunto com aflição. ‘É a “fanado” senhor. As meninas vão fazer passagem da infância para adulta. É uma grande honra para elas. Esperaram muitas semanas para isso.’, diz tentando encontrar as palavras correctas em português. ‘Mas que raio de passagem é esta que faz as crianças gritar desta forma? Que fazem ali dentro? Que se passa?‘, pergunto mais uma vez. ‘Vão cortar o órgão sexual, é tradição, vão ser mulheres!’ diz todo orgulhoso e tenta puxar-me para fora dali.
Sinto um enorme ardor no estômago quando me deparo com esta realidade. Fico atónito com o que me acabou de dizer, de confidenciar. Procuro entrar na cabana e fazer qualquer coisa mas sou desencorajado de o fazer pelos “guardas” que me aparecem vindos do nada. Retrocedo em pesados passos . Não posso fazer nada.
Procuro na aldeia informação sobre este ritual. Ninguém se oferece, Mmunda faz um esforço por me fazer a vontade mas nada. Sou convidado a abandonar a aldeia pelo ancião, Mmunda também me diz que já não é segura a minha presença no local, que temos de abandonar o mais rápido possível. Entramos no Defender e seguimos para a cidade.
Ao chegar apressei-me na despedida a Mmunda, dei-lhe o cartão da agência, assinei por trás e disse-lhe para receber lá o dinheiro.
Decidi ir de seguida até à ONG que trabalha na aldeia onde tinha estado, a mesma que me facilitou o contacto com o chefe daquela tribo, o ancião. Procurei informação pela “fanado”. Foi-me dito para aguardar, entretanto vi algumas brochuras que por ali havia, sobre programas de alfabetização, de saúde, etc... Parei de olhar quando li Mutilação Genital Feminina. ‘Que raio!’, pensei, ‘Eles sabem?’, e não demorei em pegar e ler.
Foi de todo chocante. O que li deixou-me de rastos.
O ritual passa em levar crianças para o mato durante semanas, onde são ensinadas a comportar-se quando forem casadas e cuidar bem dos velhos. Devem obedecer ao marido e aos mais velhos.
O corte é feito com qualquer coisa afiada, não importa o quê, desde lâminas, facas ou mesmo vidro, servindo a mesma para todas as crianças. Algumas não resistem e morrem, outras ficam marcadas para toda a vida, fisicamente e psicologicamente. As consequências são descomunais, tanto imediatas como a longo prazo.
Leio “excisão”, “infibulação”, “140 milhões de vítimas” e deixo cair o pedaço de papel pelo chão.
Sentado naquela cadeira no fim do mundo, dou por mim debruçado, de mãos na cara a tentar apaziguar a revolta que sinto dentro. O turbilhão de imagens que me percorre na mente não ajudam neste intento. Ouço o meu nome. Alguém me chama. A recepcionista encontrou alguém disponível para falar comigo. Levanto-me, dirijo-me para a porta indicada, entro, sento-me de novo numa cadeira e diante do delegado local, conto tudo.

O que devemos sentir e pensar

O que devemos sentir e pensar, quando defronte de nós se encontra um homem que esteve preso, foi espancado, torturado, humilhado, que esteve num campo de concentração, que esteve em frente a um pelotão de fuzilamento, que foi privado de sono, comida e bens essenciais, que não viu a família nem nada soube dela durante anos, que ainda hoje, passados vinte anos, tem pesadelos e acorda aos gritos a meio da noite, que se não fosse a medicação seria pior?

O que devemos sentir e pensar, quando defronte de nós se encontra uma mulher que esteve presa, foi espancada, torturada, humilhada, violada, que esteve num campo de concentração, foi privada de sono, comida e bens essenciais, que não viu a família nem nada soube dela durante anos e que temia abrir a boca e dizer algo que os levasse à morte, que ainda hoje, passados vinte anos, tem pesadelos e acorda aos gritos a meio da noite, que se não fosse a medicação seria pior?

Eu não sei o que pensar mas preferiria não ter sabido. Tristeza e medo, é o que sinto.

Chego à vazia casa a que dou o nome de lar

Chego à vazia casa a que dou o nome de lar. Preparo um bom banho quente. Adoro ouvir o som que a água faz ao cair na banheira. Fico a olhar fixamente para o buraco do ralo que está tapado e vejo-me a pensar nela. E penso. Mergulho no banho quente. Fico submerso uns segundos e descanso. Por ali fico a meditar, a sonhar acordado. Estou sozinho. Estou só.

Silêncio

Dá umas passas no cigarro. Faz frio lá fora. Olha para o relógio que teima em não avançar. Levanta a gola do casaco e esfrega as mãos no gesto vão de as aquecer enquanto aguenta o cigarro no canto direito da boca. Olha para o lado esquerdo, demora-se, olha para o direito e desiste. Está frio, muito frio. Ouve um carro a virar a esquina. Está a aproximar-se. Pára em frente dele. Atira o cigarro meio fumado para o chão. Apressa-se a descer os três degraus e abrir a porta traseira do carro. A rapariga demora a sair. Ela é alta, cabelo escuro, vestido de alças vermelho de ceda, liso até aos joelhos. Ele não se permite admirar mais. Fecha a porta do carro a correr. Sobe os três degraus de um salto e abre a porta escura pesada de madeira castanha maciça. A rapariga não demora a entrar. O carro parte. Ele fecha a porta detrás dela. Volta-se de costas e olha para o relógio que teima em não avançar. Faz frio lá fora. Acende outro cigarro.

Chego antecipadamente da hora marcada ao restaurante combinado

Chego antecipadamente da hora marcada ao restaurante combinado. Ainda é possível saborear um cigarro antes de entrar. A rua está movimentada. As pessoas vão atropelando-se sem pedir desculpa. Mesmo ali perto está um mendigo a fitar o meu cigarro. Espera que o termine para fumar o que eu deixar. Cada vez que olho para ele desvia o olhar, tenta passar despercebido como sempre, ninguém o vê se ele não quiser.
Termino o cigarro, apago o resto que sobra e deito no lixo.
Vejo nos seus olhos a desilusão que lhe causei. Vou direito a esse mendigo, estendo-lhe o maço de tabaco e o isqueiro, e entro no restaurante.

Era bem cedo de manhã...

Era bem cedo de manhã. Um homem iniciava o seu dia de trabalho no campo.
Homem robusto, dos seus cinquenta anos já a passar para os sessenta, olhos escuros, face bem marcada pelo tempo. Habituado à vida dura do campo desde gaiato. Nunca conheceu outra realidade. Bem casado, com dois filhos. Não sabe ler, não sabe escrever. Mas é feliz.
Trepara já para a oliveira a modos de cortar os galhos indesejados.
Estava só.
De cima daquela escada podia ver a estrada que lhe fazia o contacto com a civilização, não estava longe, seriam uns cinquenta e pouco metros.
Pegou mal num dos ramos de apoio e caiu para o vazio em queda livre. Inspirou bem fundo e arregalou bem os olhos quando se viu nesse aperto.
Cai de costas no chão. Fica inconsciente.
A queda foi de dois metros. 
Acorda aos gritos mudos que lhe saem da garganta. As lágrimas escorrem-lhe pelos traços bem marcados do seu rosto. É tremenda a dor que sente no corpo. Não se consegue mexer. Não se consegue levantar.
Passa o tempo. Consegue ver pelo sol que já passa do meio-dia. Será meio da tarde.
Tenta voltar-se e por de barriga para baixo. Consegue-o.
Tem um braço inutilizado, talvez partido … Mal sente as pernas mas consegue-as mover com esforço. Procura por ajuda em redor. Não há ninguém por perto, nem vale a pena gritar, não consegue. É difícil conseguir respirar.
‘A estrada…’, pensa. É a sua saída. É a sua salvação.
Começa por rastejar, ‘São só cinquenta metros.‘, diz para si para ganhar coragem.

Passadas várias horas, já pela madrugada, seguia pela estrada o Sr. Martilho, guarda-rios de profissão, na sua 404 de caixa aberta quando se deparou com um corpo à beira da estrada.
Ali estava um homem dos seus cinquenta anos já a passar para os sessenta, olhos escuros, face bem marcada pelo tempo, a quem, como mais tarde se viria a saber, salvara a vida.

6:11

6:11 É a segunda noite de insónia que se segue. Levanto-me em tronco nu até à cozinha deixando-a na cama. Abro o frigorífico e tiro uma cerveja. Encontro o maço de tabaco em cima da mesa e puxo por um cigarro. Acendo-o. Recosto-me no cadeirão a saborear os dois vícios. Esfrego os olhos cansados de estarem abertos e a cabeça de não parar de pensar. Tento não pensar em nada. Deixar tudo branco. Levanto-me e deambulo pelo espaço à procura de algo que me devolva esta ausência de sono. Procuro abstrair-me do que me perturba, em vão. Acabo o cigarro. Esqueço a cerveja em algum lado. Dou por mim de volta ao quarto. Sento-me na cama que já sofre com a minha falta. ‘Não consegues dormir?’, não respondo. Volto a deitar-me. Cubro-me com o lençol que anteriormente me tapava. Fico virado de barriga para cima a olhar para o escuro… Olho para o lado.
6:57 Continuo acordado.

A dor

Entro no nosso café e sento-me bem junto à grande vitrina, onde passamos algumas tardes na conversa e a beber uma cerveja. Deparo-me a fitar um casal que aparece da esquina. Param e ficam a olhar de frente. Ele está a dizer-lhe algo que não parece muito bem aos ouvidos dela. Ela está triste. Muito triste. Reparo que está naquele ponto que vai começar a chorar. Gosto de ver uma mulher chorar. Acho sensual não ligo ao facto do seu sentimento, simplesmente gosto. Ela puxa por algo do seu bolso, um lenço. Começa a chorar e limpa as lágrimas que lhe lavam os olhos das coisas que ouve. Ele continua a falar, não se cala, mesmo vendo o que ela sofre com aquelas palavras que não se deviam dizer nunca, nem ali, nem assim. Ele deixa-a. Ela fica. Está devastada, não acredita no que aconteceu e senta-se no banco de madeira que está mesmo ao seu lado. Inclina-se e continua no seu desgosto, na sua penúria.

A vida e a morte

Sentia na cara o vento que deslizava fortemente pelas paredes do edifício enquanto ouvia as exclamações da multidão que lá em baixo se juntara.
Decidiu que seria a única saída para os seus problemas. Do alto daquele prédio sabia que os iria resolver.
Ouvem-se as sereias dos carros ao longe a caminho de o tentar salvar. Há muito que já tomara esta decisão, não voltaria atrás.
Abriu o casaco e deixou-se envolver por aquele rodopiante vendaval gelado que lhe aclarou o espírito. Olhou para o alto na vontade de se render às cores das nuvens num final de tarde de Outono. Fechou os olhos. Suspirou profundamente.
Voltou o seu olhar para baixo, sorriu e deixou-se cair no vazio.

Chegámos à festa por volta das dez da noite

Chegámos à festa por volta das dez da noite. Estava frio como sempre. Quem nos recebeu não foram os donos da casa, mas já se vai tornando num hábito. Tirei-lhe o casaco e beijei-a no ombro despido, ela sorriu. Entreguei também o meu aos “anfitriões”.
Entramos na sala, uma multidão, logo ali somos saudados por várias pessoas conhecidas e outras nem tanto. A Clara, uma velha amiga e dona da casa, chama pela Ana, eu digo-lhe ‘Vai’ e fico por ali a cortejar o bar. Aceno ao Rodrigo de longe, ele retribui dizendo que já falamos. A música estava calma e as pessoas divertidas, na conversa ou até mesmo na dança. Estava uma luz de amarelo-torrado que lembrava o conforto acolhedor que a casa nos dava. Cheia de velas e um perfume no ar, que não fui capaz de identificar, sei que era leve e doce, sentindo-se também no paladar… estranho. Peço um Jack duplo com duas pedras ao empregado contratado para aquela noite. O velho Jack, não é que seja nada de especial mas para mim é um ícone da minha juventude. Encosto-me ao balcão à espera do Rodrigo e olho para a multidão envolvente.
Nisto, encontro quem nunca esperei por ali ver, não acreditava que a voltava a encontrar, no entanto assim aconteceu. Ela estava deslumbrante, desfilava com um longo vestido branco de alças bem discretas, corrido por aquele corpo perfeito. No pescoço um fino fio de ouro branco e no pulso direito uma pulseira a condizer. Pouca maquilhagem mas linda. Não acreditei nos meus olhos, voltámo-nos a encontrar depois de meses. Olha-me directamente nos olhos, parecia que já me estaria a ver faz algum tempo. Penso que corei um pouco, confesso, mas sei que engoli em seco. Dei um travo de novo no Jack e procuro um lugar para acender um cigarro.
‘Então rapaz, que tal?’, aparece o Rodrigo. ‘Não podias ter vindo em melhor altura…’, digo-lhe um pouco desiludido. ‘Não pode! Que foi? Quero agradecer-te por terem vindo. Onde está a Ana?’, pergunta-me enquanto olha para todos os lados. ‘Está com a Clara lá em cima, foi ver o vestido.’, respondo-lhe tentando encontrá-la de novo. ‘Quem procuras?’, pergunta-me, ‘Alguém conhecido?’. ‘Estava a olhar para uma pequena que ali estava de vestido branco. Conheces?’, pergunto eu confiante de ter uma resposta positiva. ‘Ah sim, sei, conheço. A Mónica. De onde a conheces?’, pareceu surpreendido. ‘Finalmente sei o nome dela.’, pensei, ‘Recordas a festa do Tiago? Tiago Conde?’, ‘Sim, sim, eu também lá estive, tu estavas… com o teu Jack, se bem me entendes.’, disse com ar de gozo. ‘Pois, eu não me lembro assim tão bem, mas sei que estive com ela.’. O Rodrigo faz uma exclamação que chamou a atenção de todos os presentes. ‘Não pode!’. Senti-me um pouco desconfortável, admito. Chamaram-no. Disse que voltava e que lhe tinha de contar o que se passou. Acenei que sim.
Torno a vê-la no outro lado da sala. De costas para mim. Deslizo um pouco para o lado da varanda na esperança que me veja e assim acontece. Dá o último gole na sua bebida, deixa-a na bandeja que passava com o empregado e vem direita a mim. Eu aguardo pela sua chegada. Nervoso… Alguém a faz parar a meio caminho, era um homem mais velho, de cabelo grisalho, não o reconheço de costas, muita gente à sua volta, o Rodrigo e a Clara apressam-se a cumprimentá-lo e a ela também. Estão de saída. Saíram. Fico desiludido com o sucedido.
Porque raio não fui ter com ela, porque terei hesitado? Vou até à varanda onde me encontro sozinho e puxo por um cigarro. ‘Belo do Cohiba!’, exclamo em voz alta. Sinto alguém presente e olho para trás. Ali estava parada de frente para mim. Vem ter comigo, sempre sem dizer nada, pega na minha mão direita, deixa um papel dobrado nela, olha-me directamente no olhos, sorri e volta a partir.
Aparece a Ana, meto sorrateiramente o papel no bolso das calças, ‘Quem era?’, pergunta-me enquanto a vê a caminho da porta de saída. ‘Não sei’, digo, ‘Perguntou-me pelas horas e saiu.’, menti. Dali ao final da festa passou depressa. Despedimo-nos dos anfitriões e saímos, “Já falta pouco para o casamento!”, pensei.
Deixo a Ana em casa, ainda tenho um trabalho para finalizar e vou ter de me levantar bem cedo. Beijo longo de despedida.
Chego a casa. Preparo um banho bem quente. Sinto no bolso um papel, ‘O papel!’, grito. Dou por mim tipo um puto a abrir um presente de Natal! Olho, leio. No papel dizia: “Não me procures, eu encontro-te. MP”.

Vejo como reconstrói com o pai aquilo que deitou abaixo naquela noite

Vejo como reconstrói com o pai aquilo que deitou abaixo naquela noite.
Por vezes tomamos as decisões menos acertadas nos momentos menos bons para as tomar. A verdade é que temos de viver com elas. São essas nossas decisões que nos moldam no decorrer da nossa vida, sejam boas ou más, temos de viver com elas e assumi-las.
Foi o que aconteceu.
Embora não se recorde das palavras que o pai lhe disse quando chegou a casa, de certo que se lembra das dores dos braços após reconstrução daquele muro. E o pai estava lá. Um pai nunca se cansa.
Um pai nunca se cansa de dar o exemplo, um pai nunca se cansa de ensinar.

Momentos

Chegaste ao meu estúdio e entraste sem pedires. Sinto o teu cheiro no ar. Suave e doce. Passas a tua leve mão pelo meu cabelo para mostrares a tua presença. Sorrio sem saberes. Segues para a janela e puxas por um cigarro. Está calor lá fora e sente-se uma ligeira brisa. Ficas de olho em mim enquanto trabalho. Acendes o cigarro e guardas os fósforos na tua bolsa. Vais fumando com tempo o teu cigarro. Olhas lá para fora, algo te despertou o interesse. Queres vir ter comigo e dizer-me algo mas hesitas. Voltas atrás no teu pensamento. Volta o cigarro à tua boca. Continuo o meu trabalho. Finjo não te ligar. Começas por ficar impaciente e noto isso sempre que mordes o lábio inferior. Levanto-me. Surpreendeste. Tentas dissimular. Vou ter contigo e beijo-te. O coração bate. E eu sinto-o, como tu. Olho para ti e sorrio. Acaricio-te. Volto a sentar-me. Terminas o cigarro. Dás a última olhadela pela janela. Sorris. Voltas-te para a saída e segues. Passas de novo por mim passando a tua leve mão pelo meu cabelo e sais. Eu olho para a porta e sinto a tua falta.

Já passava muito para lá da hora do almoço

Já passava muito para lá da hora do almoço quando acordei nu na cama daquele quarto. Ela era linda. Alva. De um branco que nunca tinha visto. Olhos claros. Loira. E estava ao meu lado, ali deitada a olhar para mim a sorrir. Confesso que estava confuso e a perguntar-me como terá acontecido. Aconteceu. Levanta-se sorrindo e eu olho para o seu escultural e feminino corpo despido só para mim. Começa por se vestir. Tem todo o tempo do mundo, por isso a morosidade com que o faz, que se traduz da forma mais sensual que alguma vez pude observar. Saiu do quarto e eu fiquei a fitá-la enquanto se afastava. Não me disse uma única palavra, eu também não a pedi. Já vestido sigo até à cozinha onde estavam, para além de alguns residentes da casa, algumas das pessoas da festa que passaram ali a noite. Todos me olham e me dão os bons dias. Sorrio e retribuo. Ela olha para mim e sorri. Fico por ali alguns minutos, como qualquer coisa, troco umas palavras, mas não com ela. Só trocamos olhares. Arrumo as minhas coisas e preparo-me para ir para casa, despeço-me de todos, ela fica a olhar para mim. Sigo para a porta, sinto-me perseguido e viro-me para trás. Ela estava ali, parada de frente para mim, sozinhos, a olhar-me como se eu lhe tivesse prometido algo que não lhe tinha dado. Durante uns segundos ficámo-nos de olhos nos olhos. Ela ergueu a sua delicada mão ao meu rosto, acariciando-o e beijou-me suavemente nos lábios. Saiu. Não me disse nada e eu também não lho pedi. Tornei a virar-me e sai.

Perdoa-me

‘Perdoa-me’, foi a última coisa que lhe saiu da boca. Um grito de desespero, um pedido ignorado por completo. Já as mãos estavam cansadas e a escorrer em sangue quando terminei de o sovar. Tinha a cara toda desfeita. Não aguentou a fúria descontrolada destes punhos sedentos de vingança, de justiça. Sentei-me junto ao corpo deitado no chão, a tentar recuperar o fôlego. Procurei por algo limpo para limpar a cara, o suor, o sangue, tudo. Tinha as mãos doridas, algum dedo partido, ainda estava quente mas sabia que era a verdade. Levantei-me a custo do chão, onde se formara uma poça com o passar do tempo. Dou os últimos suspiros debruçado, contemplando aquele corpo ali estendido ainda à espera de um movimento que justificasse outra investida. Mas não, nada ali mexia. Mas respirava. Olho em volta e procuro vida em redor. Não se vê ninguém. Atiro-lhe o casaco todo amarrotado para cima, abandono o local e deixo para trás o passado.