A mordaz aurora corpuscular no seio da discussão elevou ao seu auge o tom dos uivos do locutor que por sua vez se ausentou assim que a sua presença deixou de se sentir... A morte fez o seu trabalho, já nada nem ninguém o poderá ajudar. As palavras estão escritas e os actos executados. Resta aguardar agora pela hora da redenção.

Chegámos à festa por volta das dez da noite

Chegámos à festa por volta das dez da noite. Estava frio como sempre. Quem nos recebeu não foram os donos da casa, mas já se vai tornando num hábito. Tirei-lhe o casaco e beijei-a no ombro despido, ela sorriu. Entreguei também o meu aos “anfitriões”.
Entramos na sala, uma multidão, logo ali somos saudados por várias pessoas conhecidas e outras nem tanto. A Clara, uma velha amiga e dona da casa, chama pela Ana, eu digo-lhe ‘Vai’ e fico por ali a cortejar o bar. Aceno ao Rodrigo de longe, ele retribui dizendo que já falamos. A música estava calma e as pessoas divertidas, na conversa ou até mesmo na dança. Estava uma luz de amarelo-torrado que lembrava o conforto acolhedor que a casa nos dava. Cheia de velas e um perfume no ar, que não fui capaz de identificar, sei que era leve e doce, sentindo-se também no paladar… estranho. Peço um Jack duplo com duas pedras ao empregado contratado para aquela noite. O velho Jack, não é que seja nada de especial mas para mim é um ícone da minha juventude. Encosto-me ao balcão à espera do Rodrigo e olho para a multidão envolvente.
Nisto, encontro quem nunca esperei por ali ver, não acreditava que a voltava a encontrar, no entanto assim aconteceu. Ela estava deslumbrante, desfilava com um longo vestido branco de alças bem discretas, corrido por aquele corpo perfeito. No pescoço um fino fio de ouro branco e no pulso direito uma pulseira a condizer. Pouca maquilhagem mas linda. Não acreditei nos meus olhos, voltámo-nos a encontrar depois de meses. Olha-me directamente nos olhos, parecia que já me estaria a ver faz algum tempo. Penso que corei um pouco, confesso, mas sei que engoli em seco. Dei um travo de novo no Jack e procuro um lugar para acender um cigarro.
‘Então rapaz, que tal?’, aparece o Rodrigo. ‘Não podias ter vindo em melhor altura…’, digo-lhe um pouco desiludido. ‘Não pode! Que foi? Quero agradecer-te por terem vindo. Onde está a Ana?’, pergunta-me enquanto olha para todos os lados. ‘Está com a Clara lá em cima, foi ver o vestido.’, respondo-lhe tentando encontrá-la de novo. ‘Quem procuras?’, pergunta-me, ‘Alguém conhecido?’. ‘Estava a olhar para uma pequena que ali estava de vestido branco. Conheces?’, pergunto eu confiante de ter uma resposta positiva. ‘Ah sim, sei, conheço. A Mónica. De onde a conheces?’, pareceu surpreendido. ‘Finalmente sei o nome dela.’, pensei, ‘Recordas a festa do Tiago? Tiago Conde?’, ‘Sim, sim, eu também lá estive, tu estavas… com o teu Jack, se bem me entendes.’, disse com ar de gozo. ‘Pois, eu não me lembro assim tão bem, mas sei que estive com ela.’. O Rodrigo faz uma exclamação que chamou a atenção de todos os presentes. ‘Não pode!’. Senti-me um pouco desconfortável, admito. Chamaram-no. Disse que voltava e que lhe tinha de contar o que se passou. Acenei que sim.
Torno a vê-la no outro lado da sala. De costas para mim. Deslizo um pouco para o lado da varanda na esperança que me veja e assim acontece. Dá o último gole na sua bebida, deixa-a na bandeja que passava com o empregado e vem direita a mim. Eu aguardo pela sua chegada. Nervoso… Alguém a faz parar a meio caminho, era um homem mais velho, de cabelo grisalho, não o reconheço de costas, muita gente à sua volta, o Rodrigo e a Clara apressam-se a cumprimentá-lo e a ela também. Estão de saída. Saíram. Fico desiludido com o sucedido.
Porque raio não fui ter com ela, porque terei hesitado? Vou até à varanda onde me encontro sozinho e puxo por um cigarro. ‘Belo do Cohiba!’, exclamo em voz alta. Sinto alguém presente e olho para trás. Ali estava parada de frente para mim. Vem ter comigo, sempre sem dizer nada, pega na minha mão direita, deixa um papel dobrado nela, olha-me directamente no olhos, sorri e volta a partir.
Aparece a Ana, meto sorrateiramente o papel no bolso das calças, ‘Quem era?’, pergunta-me enquanto a vê a caminho da porta de saída. ‘Não sei’, digo, ‘Perguntou-me pelas horas e saiu.’, menti. Dali ao final da festa passou depressa. Despedimo-nos dos anfitriões e saímos, “Já falta pouco para o casamento!”, pensei.
Deixo a Ana em casa, ainda tenho um trabalho para finalizar e vou ter de me levantar bem cedo. Beijo longo de despedida.
Chego a casa. Preparo um banho bem quente. Sinto no bolso um papel, ‘O papel!’, grito. Dou por mim tipo um puto a abrir um presente de Natal! Olho, leio. No papel dizia: “Não me procures, eu encontro-te. MP”.

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