A mordaz aurora corpuscular no seio da discussão elevou ao seu auge o tom dos uivos do locutor que por sua vez se ausentou assim que a sua presença deixou de se sentir... A morte fez o seu trabalho, já nada nem ninguém o poderá ajudar. As palavras estão escritas e os actos executados. Resta aguardar agora pela hora da redenção.

MGF

Acompanho com a máquina fotográfica todo o alvoroço feito pelas mulheres. Sigo o caminho atrás delas. Hoje é dia de festa, hoje alguém vai “passar a ser mulher”. A “fanateca” lidera o grupo à minha frente e vai decidida. Entramos pelo meio do mato, o meu guia, Mmunda, vai-me puxando o braço, coisa que vou ignorando.
Chegados a uma cabana sou proibido de entrar pelas mulheres, alguns homens estão por ali também mas não entram. ‘Era melhor não estarmos aqui senhor!’ diz-me Mmunda. Olho para ele com interrogação, ‘Como não posso estar aqui? Fui convidado para estar nesta festa. Ainda ontem te disse. Que se passa?’, ‘Há coisas que se passam, devem ficar aqui!’ diz puxando-me outra vez pelo braço. Ouço crianças a chorar, meninas. Ouço os gritos desesperados que dali escapam e apercebo-me de que algo não está bem. ‘Afinal que se passa aqui?’ pergunto eu perplexo, ‘Era para ser um ritual de passagem e são estes gritos que oiço? Crianças desesperadas aos gritos e choros? Mmunda que é isto?’ pergunto com aflição. ‘É a “fanado” senhor. As meninas vão fazer passagem da infância para adulta. É uma grande honra para elas. Esperaram muitas semanas para isso.’, diz tentando encontrar as palavras correctas em português. ‘Mas que raio de passagem é esta que faz as crianças gritar desta forma? Que fazem ali dentro? Que se passa?‘, pergunto mais uma vez. ‘Vão cortar o órgão sexual, é tradição, vão ser mulheres!’ diz todo orgulhoso e tenta puxar-me para fora dali.
Sinto um enorme ardor no estômago quando me deparo com esta realidade. Fico atónito com o que me acabou de dizer, de confidenciar. Procuro entrar na cabana e fazer qualquer coisa mas sou desencorajado de o fazer pelos “guardas” que me aparecem vindos do nada. Retrocedo em pesados passos . Não posso fazer nada.
Procuro na aldeia informação sobre este ritual. Ninguém se oferece, Mmunda faz um esforço por me fazer a vontade mas nada. Sou convidado a abandonar a aldeia pelo ancião, Mmunda também me diz que já não é segura a minha presença no local, que temos de abandonar o mais rápido possível. Entramos no Defender e seguimos para a cidade.
Ao chegar apressei-me na despedida a Mmunda, dei-lhe o cartão da agência, assinei por trás e disse-lhe para receber lá o dinheiro.
Decidi ir de seguida até à ONG que trabalha na aldeia onde tinha estado, a mesma que me facilitou o contacto com o chefe daquela tribo, o ancião. Procurei informação pela “fanado”. Foi-me dito para aguardar, entretanto vi algumas brochuras que por ali havia, sobre programas de alfabetização, de saúde, etc... Parei de olhar quando li Mutilação Genital Feminina. ‘Que raio!’, pensei, ‘Eles sabem?’, e não demorei em pegar e ler.
Foi de todo chocante. O que li deixou-me de rastos.
O ritual passa em levar crianças para o mato durante semanas, onde são ensinadas a comportar-se quando forem casadas e cuidar bem dos velhos. Devem obedecer ao marido e aos mais velhos.
O corte é feito com qualquer coisa afiada, não importa o quê, desde lâminas, facas ou mesmo vidro, servindo a mesma para todas as crianças. Algumas não resistem e morrem, outras ficam marcadas para toda a vida, fisicamente e psicologicamente. As consequências são descomunais, tanto imediatas como a longo prazo.
Leio “excisão”, “infibulação”, “140 milhões de vítimas” e deixo cair o pedaço de papel pelo chão.
Sentado naquela cadeira no fim do mundo, dou por mim debruçado, de mãos na cara a tentar apaziguar a revolta que sinto dentro. O turbilhão de imagens que me percorre na mente não ajudam neste intento. Ouço o meu nome. Alguém me chama. A recepcionista encontrou alguém disponível para falar comigo. Levanto-me, dirijo-me para a porta indicada, entro, sento-me de novo numa cadeira e diante do delegado local, conto tudo.

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